Síndrome de Noé | A necessidade de deter animais

O “Transtorno de Acumulação” diz respeito a uma dificuldade do sujeito em desfazer-se de objectos (“Síndrome de Diógenes”) e/ou animais (“Síndrome de Noé”) que se acumulam de forma desorganizada, sendo um problema que assola a nossa sociedade, principalmente, no que aos animais diz respeito.

À semelhança do que acontece com a acumulação de objectos, também a acumulação de animais poderá causar uma questão de saúde pública, principalmente, quando os cidadãos que padecem deste transtorno, acabam por não ter os cuidados necessários com os animais, para além de não lhes prestarem o bem-estar que merecem, podendo culminar, na falta de cuidados, na origem de doenças que poderão pôr em causa, não só a saúde de próprios animais, com também da população em geral.

Tendo em conta os problemas que advêm do “Transtorno de Acumulação”, tanto para os próprios indivíduos como para os animais, que acabam por ser “acumulados” sem que a habitação tenha as necessárias condições para tal, teve a Assembleia da República a necessidade de a 25 de Janeiro de 2018, publicar a Resolução da Assembleia da República nº 20/2018, que recomenda ao Governo a criação de um grupo de trabalho, constituído por profissionais de saúde e comportamento animal, psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais, tendo como principal objectivo prevenir e tratar os casos de “Síndrome de Noé”.

Passado 2 (dois) anos após a recomendação feita pela Assembleia da República, podemos colocar as seguintes questões: foram efetivamente criados estes grupos de trabalho? Como e quando actuam os mesmos?

No nosso entender, se efectivamente existe uma resposta positiva, principalmente à primeira questão, é de difícil compreensão o porquê de o controlo dos casos de “Síndrome de Noé”, que maioria das vezes, acabam por resultar em maus tratos para os próprios animais, não ser realizado de uma forma mais regular, proporcionado aos indivíduos, pelas entidades competentes, os necessários cuidados a ter, principalmente, para que o bem-estar dos animais não seja posto em causa.

A título de exemplo dessa falta de controlo, podemos referir o caso que ocorreu no passado mês de maio, em Caneças, concelho de Odivelas, onde juntamente com a proprietária da habitação, residiam cerca de 35 animais, sem qualquer condição de bem-estar e dignidade que os mesmos são merecedores, para além destes animais serem ainda vítimas da sua venda ilegal, sendo muitas vezes criados apenas para isso.

Após a intervenção das autoridades competentes, nomeadamente da PSP, a grande maioria dos animais foram retirados à “acumuladora” e entregues ao Canil Municipal de Odivelas, porém, 7 dos animais acabaram por permanecer aos “cuidados” da proprietária da habitação, uma vez que a mesma afirmou sentir “um grande afeto” pelos mesmos.

Não podemos negar que perante tal caso estamos a lidar com uma clara situação de “Síndrome de Noé”, no qual o indivíduo acumulador perde a total noção da quantidade de animais acumulados e dos problemas que o excesso de acumulação pode trazer para si e para os próprios animais à sua guarda, actuando, maioria das vezes, de uma forma negligente.

Não podemos também negar que estamos perante um tema que toca, sobretudo, na saúde das próprias pessoas, dado que os “acumuladores” acabam por apresentar alguns sintomas, como por exemplo, o isolamento excessivo ou o crescimento do descuido com a higiene pessoal.

E por mais que estas pessoas sejam “tratadas” e acompanhadas, vários estudos apontam que a taxa de reincidência é de 100%, o que prova que é necessário ter mais atenção, por parte das autoridades competentes, a este tipo de situações.

Afastando-nos um pouco da parte mais técnica e medicinal que ao “Transtorno de Acumulação” diz respeito, importa salientar o impacto que este transtorno tem, a nível jurídico, na vida das pessoas e dos próprios animais.

Ter em casa um animal de companhia, desde que o seja permitido, principalmente, quando o sujeito reside num apartamento, em nada parece estranho à população no geral, porém, a questão muda de tom, quando em vez de um, as pessoas começam a ter 5, 10 ou 20 animais ao seu cuidado, sem que tenham as devidas condições para o fazer, principalmente, condições higiénicas.

As pessoas a quem seja diagnosticado o “Síndrome de Noé”, no que os animais diz respeito, consideram de forma negligente e sobrevalorizada, que se encontram a auxiliar os animais a que dão abrigo, muitas das vezes sem terem noção dos impacto que esta “acumulação” poderá ter na sua saúde e na própria saúde dos animais.

É verdade que dentro da sua casa, no íntimo do seu direito à vida privada, o cidadão poderá fazer e ter o que bem entender (tendo noção que essa liberdade não é inteiramente absoluta), porém, quando o que passa para lá da “porta do vizinho” possa pôr em causa a saúde pública, a própria saúde e a dos animais que consigo se encontram, este direito deverá ser reprimido por um bem maior, o bem vida.

Várias têm sido as notícias ao longo dos anos, que mostram o crescimento deste tipo de casos no nosso país, o que deverá ser da preocupação das autoridades nacionais que, na maioria dos casos, acabam por não fazer nada, embora muitas vezes sejam alertadas para isso.

Mas não nos podemos esquecer que no reverso da medalha estão os animais, que merecem ser acolhidos e ter um lar, porém, este lar tem de apresentar condições dignas para que o bem-estar destes seja assegurado.

Ora, o bem-estar animal deve ser compreendido segundo o alojamento, manutenção e acomodação dos animais, referido ainda que nenhum animal deve ser detido se estas condições de bem-estar não se encontrem verificadas.

Grande parte das vezes, nos casos em que a pessoa sofra de “Síndrome de Noé”, a mesma até poderá apresentar condições de habitabilidade e higienização para deter um animal, porém, quando uma casa de habitação alberga, a título de exemplo, 10 ou 15 gatos, as condições acima referidas, assim como as condições para o bem-estar animal, têm de ser ajustadas, o que não se verifica na vida real.

Ora, tal falta de condições, resultando na falta do bem-estar animal, poderá ser encarado como um crime de maus tratos a animais de companhia, previsto no art. 387.º do Código Penal, sendo punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, quando o detentor, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos aos animais de companhia.

Poderá ainda existir um agravamento da moldura penal, podendo o agente ser punido a uma pena de prisão até dois anos ou pena de multa até 240 dias, se dos factos previstos acima resultar a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção.

É de notar ainda que, as penas acima previstas, poderão ser aplicadas penas acessórias, previstas no art. 388.º-A do Código Penal como, por exemplo, a privação do direito de detenção de animais de companhia pelo período máximo de 5 anos (alínea a) do nº 1).

Como podemos ver, com tudo o exposto ao longo deste artigo, o “Transtorno de Acumulação”, na sua vertente de “Síndrome de Noé” é um problema que assola a nossa sociedade e principalmente, os mais carenciados, sobretudo idosos, que negligentemente consideram que estão a ajudar os animais e, até certo ponto, a si mesmo, porém, o resultado que advém da acumulação de animais mostra-se mais prejudicial para a sua saúde e dos outros, do que benéfica.

Por: Rafael Machado
BQ Advogadas, S.P., R.L.