Estudo conduzido por investigadoras do i3S e do ICBAS concluiu que os animais sujeitos a métodos de treino aversivos exibiram mais comportamentos de stress.
Uma equipa de investigadoras do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S) e do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), da Universidade do Porto concluiu que os métodos de treino aversivos (utilização de coleiras estranguladoras, coleiras de bicos e intimidação) têm um impacto negativo no bem-estar dos cães.
A conclusão resultou de um estudo de grande dimensão, envolvendo sete escolas de treino do Grande Porto e 92 pares de cães de companhia e os seus tutores, no qual ficou também demonstrado que quanto menor a frequência de aversivos usados, menor o impacto negativo no bem-estar dos animais.
Os resultados deste trabalho pioneiro – e que tem merecido ampla difusão internacional – constam de um artigo recentemente submetido para publicação e cujo preprint se encontra disponível no BioRxiv.
“Para avaliar o bem-estar dos 92 animais durante o processo de treino, realizámos filmagens durante os treinos nas escolas, que foram posteriormente usadas para avaliação de comportamentos de stress. Em paralelo fizemos recolhas de saliva para analisar os níveis de cortisol salivar (uma hormona de stress). Posteriormente, para uma avaliação de bem-estar a longo prazo, os animais visitaram o ICBAS para a realização de uma tarefa que avalia o estado emocional”, explica Catarina Vieira de Castro, primeira autora do artigo.
Um método pioneiro
A aplicação desta tarefa que avalia o estado emocional dos cães – chamada tarefa de “viés cognitivo” – é mesmo umas das principais inovações introduzidas pelo estudo. Na prática, o desafio passou por ensinar os animais a diferenciar entre duas localizações de uma gamela.
“Se, por exemplo, a gamela estivesse do lado esquerdo da sala, esta continha sempre um pedaço de comida; se estivesse do lado direito estava sempre vazia. Rapidamente os animais aprendem a não ir à gamela vazia”, explica Catarina Vieira de Castro.
Numa fase posterior, “colocámos gamelas em posições intermédias (ambíguas). Nesta tarefa, animais em estados emocionais mais positivos vêem o ‘copo meio cheio’ e são mais ‘optimistas’, correndo para estas gamelas acreditando que têm comida.
Por outro lado, os animais em estados emocionais mais negativos vêem “o copo meio vazio”, são mais “pessimistas” e dirigem-se às gamelas mais lentamente, pouco convencidos de que encontrarão comida”.
Castigo ou recompensa?
Os métodos de treino de cães podem ser identificados e divididos em duas grandes categorias.
As metodologias aversivas, que utilizam, por exemplo, coleiras estranguladoras, coleiras de bicos e intimidação para treinar os animais. E as metodologias baseadas em recompensas, focadas na premiação de comportamentos desejados e em castigos que não inflijam dor ou desconforto aos animais.
Para Anna Olsson, última autora do artigo e líder do grupo de investigação do i3S «Laboratory Animal Science», os resultados obtidos neste estudo “mostraram que os cães provenientes de escolas que usam métodos aversivos exibiram mais comportamentos de stress durante os treinos”. Além disso, “apresentaram níveis mais elevados de cortisol após os treinos e foram mais ‘pessimistas’ na tarefa de viés cognitivo”.
“Um estudo como este, com uma amostra de quase cem animais e representativa dos cães de companhia e a forma como estes são treinados, é essencial para definir recomendações», adianta ainda Anna Olsson.
Já Catarina Vieira de Castro salienta que, “dado o papel cada vez mais importante que os cães têm como animais de companhia, o treino aparece como uma prática chave para o sucesso da integração destes animais no dia-a-dia da nossa sociedade”. Nesse sentido, “o estudo das metodologias de treino, sua eficácia e impacto no bem-estar animal é de extrema relevância”.
Ainda segundo a investigadora, “os resultados obtidos sugerem que a utilização de aversivos no treino de cães deve ser evitada, pelo impacto negativo que têm no bem-estar dos animais”. Já “relativamente à eficácia das diferentes metodologias, ainda aguardamos respostas por parte da ciência. No entanto, o uso de metodologias aversivas só terá justificação se estas se revelarem mais eficazes do que as metodologias baseadas em recompensas”.
Três anos de trabalho
A linha de investigação sobre métodos de treino de cães foi iniciada em 2016 após a atribuição de uma bolsa de pós-doutoramento FCT a Catarina Vieira de Castro. No ano seguinte, as investigadoras publicaram um artigo onde analisaram os estudos publicados em revistas científicas sobre o impacto dos métodos de treino no bem-estar dos cães. Os dados já sugeriam então uma relação entre a utilização de metodologias aversivas e indicadores de bem-estar comprometido nos cães.
Estes dados eram, contudo, limitados, uma vez muitos dos estudos utilizados tinham como populações de estudo cães polícia ou cães de laboratório. Por outro lado, aqueles que se focavam em cães de companhia baseavam-se em relatos (subjetivos) dos proprietários. Para além disso, as coleiras eletrónicas (vulgarmente conhecidas como coleiras de choque), foram o principal alvo de estudo e estas representam apenas uma pequena parte das metodologias aversivas utilizadas.
As investigadoras decidiram, por isso, avançar com um estudo que investigasse, com base numa recolha e análise objetivas de dados, a população de cães de companhia nas condições em que estes são de facto treinados. Desse trabalho resultou um outro estudo, “com dados que parecem apontar para a existência de padrões de vinculação segura (de melhor qualidade) em cães treinados na base das recompensas”.
Fonte: Universidade do Porto